O que veio primeiro: os numerais ou as letras?
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A presente palestra visa apresentar como surgiram os primeiros numerais na Mesopotâmia, desde o princípio do Neolítico. Irá mostrar como os primeiros signos materiais, os tokens, evoluíram, como os primeiros sistemas de numeração surgiram. Vai abordar como isso influiu nas primeiras interpretações da matemática babilônica, dadas principalmente por Neugebauer e Thureau-Dangin. Irá mostra a importância dos denominados textos proto-literatos, sua história, sua decifração, contribuiu para esclarecer as origens da escrita. A história desses textos e como mudaram nosso entendimento sobre a matemática mesopotâmica será apresentada, mostrando o fundamental papel que a equipe do Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte (MPIWG) in Berlin desempenhou. Ilustrará como Peter Damerow, Hans Nissen e Robert Englund contribuíram, juntamente com Jens Hoyrup, para dar uma interpretação radicalmente nova à matemática babilônica. Abordará como surgiram os primeiros sinais cuneiformes que originaram a primeira escrita. Mostrará, abreviadamente, os passos dados para a decifração do sumeriano, a mais antiga língua registrada por escrito.
1. Panorama Histórico da Escrita e da Numeração
A origem da escrita e da numeração está intrinsecamente ligada à evolução das sociedades humanas. Pesquisas arqueológicas indicam que a necessidade de registrar transações comerciais levou ao desenvolvimento dos primeiros sistemas de escrita, como os sinais cuneiformes da Mesopotâmia (SCHMANDT-BESSERAT, 1992). No entanto, há evidências de que os numerais, usados para contagem e controle de bens, precederam os caracteres fonéticos (IFRAH, 1997). Segundo Goody (1986), a escrita nasceu como um instrumento de administração antes de ser um meio de expressão literária.
A escrita cuneiforme da Suméria, datada de cerca de 3200 a.C., combina símbolos para números e palavras, mas os numerais são anteriores a esse sistema. Denise Schmandt-Besserat demonstrou que, por volta de 8000 a.C., as sociedades neolíticas já utilizavam tokens de argila para representar quantidades de cereais, ovelhas e outros bens (SCHMANDT-BESSERAT, 1992). Esses objetos eram armazenados em envelopes de barro, antecipando os registros gráficos. Portanto, pode-se afirmar que a contagem e os numerais tiveram precedência funcional e cronológica sobre a escrita alfabética.
A hipótese de que a notação numérica antecede a escrita fonética é corroborada por estudos sobre a tábua de Kish e os sistemas proto-elamitas. Esses registros mostram uma transição dos símbolos quantitativos para sinais fonéticos ao longo de séculos (IFRAH, 1997). Embora a evolução dos sistemas de escrita tenha ocorrido de forma distinta em diferentes civilizações, o uso de marcas numéricas rudimentares para fins contábeis é um denominador comum. A ordem de surgimento parece seguir um percurso lógico: da contagem à linguagem escrita.
2. Perspectivas Científicas e Interdisciplinares
A discussão sobre o que surgiu primeiro, numerais ou letras, envolve linguistas, arqueólogos, historiadores e matemáticos. Segundo Olson (1994), a escrita é uma tecnologia cognitiva que transformou a consciência humana, mas sua gênese foi impulsionada por necessidades pragmáticas. O registro de números surgiu de demandas comerciais e administrativas, enquanto a escrita fonética emergiu para representar linguagem falada. Esta visão é compartilhada por Nissen, Damerow e Englund (1993), que apontam que o sistema contábil foi o berço da escrita cuneiforme.
Estudos interdisciplinares têm revelado como os sistemas simbólicos se desenvolveram a partir de convenções culturais e não de uma lógica universal. O trabalho de Jack Goody (1986) destaca que a escrita reorganiza o pensamento, mas seu surgimento está enraizado em práticas sociais. O mesmo vale para a numeracia: ela evolui conforme a complexidade das tarefas quantitativas exigidas pela sociedade. Assim, letras e números não são invenções isoladas, mas respostas interdependentes a contextos específicos.
A neurociência e a psicologia cognitiva também contribuem para essa discussão. Dehaene (2010) mostra que o cérebro humano possui circuitos específicos para o reconhecimento de números, anteriores à alfabetização. Isso sugere uma predisposição biológica para a numeracia antes da literacia. O cérebro trata números e palavras em regiões distintas, o que pode refletir a evolução distinta de seus registros históricos. Essa constatação reforça a tese de que os numerais precederam, em termos funcionais e cognitivos, os sistemas de escrita alfabética.
3. Aplicações e Utilidades dos Sistemas de Escrita e Numeração
Desde suas origens, os sistemas de escrita e numeração foram empregados para resolver problemas práticos. Os numerais eram usados para contabilizar tributos, registrar colheitas e calcular trocas comerciais, como demonstrado nas primeiras tabuletas sumérias (NISSEN; DAMEROW; ENGLUND, 1993). A escrita fonética, por sua vez, foi fundamental para registrar leis, narrativas míticas e mensagens administrativas. Ambos os sistemas permitiram a criação de sociedades mais complexas e organizadas.
Com o avanço das civilizações, letras e números passaram a integrar códigos jurídicos, tratados científicos e obras literárias. Os egípcios, por exemplo, utilizavam hieróglifos para palavras e símbolos próprios para números em documentos religiosos e econômicos (IFRAH, 1997). Na Grécia Antiga, o alfabeto foi adaptado para criar a notação numérica alfabética, evidenciando a fusão entre letras e números. Isso revela como os dois sistemas se entrelaçaram nas aplicações cotidianas e intelectuais.
Hoje, as tecnologias digitais continuam a integrar letras e números em linguagens de programação, bancos de dados e criptografias. A distinção entre numerais e letras ainda é funcional, mas sua interdependência é evidente. Conforme Dehaene (2010), o domínio dos dois sistemas é essencial para o raciocínio abstrato e a inovação tecnológica. Portanto, a compreensão das origens desses sistemas é crucial para entender sua relevância atual e futura.
4. Relevância Educacional na Educação Básica
Estudar as origens da escrita e da numeração na Educação Básica contribui para o letramento científico e histórico. Segundo Ferreiro e Teberosky (1985), crianças constroem hipóteses sobre a escrita desde cedo, e o conhecimento histórico favorece uma compreensão mais crítica. Apresentar a evolução dos numerais e das letras em sala de aula amplia o entendimento sobre os sistemas simbólicos e sua função social. Tal abordagem estimula o pensamento reflexivo e contextualizado.
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) propõe a articulação entre diferentes áreas do saber, o que permite inserir o tema de forma transversal. Professores de História, Matemática e Língua Portuguesa podem trabalhar juntos, explorando fontes históricas, registros arqueológicos e sistemas de numeração. O estudo das origens favorece uma educação integrada e interdisciplinar. Além disso, permite relacionar o passado ao presente, promovendo uma aprendizagem significativa.
Por fim, abordar esse tema ajuda os estudantes a valorizar a diversidade cultural e o desenvolvimento humano. Ao entender que diferentes povos criaram sistemas próprios de escrita e numeração, promove-se o respeito à pluralidade (GOODY, 1986). Essa consciência histórica fortalece a identidade e a cidadania. Assim, a questão “o que veio primeiro: os numerais ou as letras?” transforma-se em uma poderosa ferramenta pedagógica.
Referências bibliográficas (ABNT)
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso, 2010.
FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.
GOODY, Jack. The logic of writing and the organization of society. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
IFRAH, Georges. Os números: a história de uma grande invenção. São Paulo: Nova Fronteira, 1997.
NISSEN, Hans J.; DAMEROW, Peter; ENGLUND, Robert K. Archaic Bookkeeping: Early Writing and Techniques of Economic Administration in the Ancient Near East. Chicago: The University of Chicago Press, 1993.
OLSON, David R. The World on Paper: The Conceptual and Cognitive Implications of Writing and Reading. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
PONTES, Acelino. Prolegômenos à Nova Matemática. Fortaleza: Scientia Publishers, 2023. 232 p.
SCHMANDT-BESSERAT, Denise. Before Writing: From Counting to Cuneiform. Austin: University of Texas Press, 1992.
Nota: Parte do texto foi produzida em sinergia com IA.

Manoel de Campos Almeida
Engenheiro Civil e Físico, formado em Engenharia Civil e Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1970.
Professor Emérito da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Sua carreira abrange tanto a prática profissional em engenharia quanto à docência e à pesquisa acadêmica, com destaque para sua atuação como professor e sua produção intelectual focada na história da ciência, principalmente na história da matemática e suas origens pré-históricas.
Na PUCPR ocupou cargos administrativos importantes, como Coordenador Geral dos Laboratórios da Instituição, Presidente da Comissão de Vestibular e Assessor da Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento.
Antes disso, foi professor e decano do Departamento de Matemática da UFPR.
Pesquisador convidado do Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte (MPIWG) in Berlin.
Fora da academia, ele também trabalhou no Banco de Desenvolvimento do Paraná, onde chefiou departamentos como Análise de Projetos, Acompanhamento de Empresas, Controle de Projetos e Expansão (Marketing).
Essa experiência no setor público e privado demonstra sua versatilidade, aplicando conhecimentos de engenharia econômica e análise de projetos de investimento em contextos práticos.
Sua obra é marcada por uma abordagem interdisciplinar que conecta matemática, neurofisiologia, filosofia e história. Seus trabalhos publicados concentram-se principalmente nas origens da matemática, com ênfase em períodos pré-históricos, como o Paleolítico e o Neolítico.
Autor de vários livros e artigos, conferencista, revisor de várias revistas científicas, tanto no Brasil como no exterior.
Diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.