Cardano e a Regra dos Sinais

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Apresenta-se no presente trabalho uma análise minuciosa do Capítulo XXII do tratado De regula aliza libellus de Girolamo Cardano, onde consta a sua reformulação e putativa demonstração da regra dos sinais. Mostra-se que, embora seu resultado é pontualmente interessante, é globalmente inconsistente, sendo a raiz da invalidez do argumento centrada na atribuição de valores negativos a comprimentos e áreas. Mostra-se também como o seu argumento depende de dois princípios gerais extra-matemáticos.

1. Evoluções Históricas

O matemático italiano Gerolamo Cardano (1501–1576) é uma figura central no desenvolvimento do pensamento algébrico e das regras operacionais com números positivos e negativos. Em sua obra “Ars Magna” (1545), Cardano sistematizou métodos de resolução de equações, contribuindo de maneira significativa para a álgebra moderna (Boyer, 2012). Embora a regra dos sinais já estivesse implícita em escritos anteriores, como os de Fibonacci, foi com Cardano que o raciocínio se tornou mais estruturado e acessível à sistematização (Katz, 2009). Essa formalização histórica representa uma ruptura com a matemática puramente geométrica dos gregos, promovendo a simbolização algébrica.

A chamada “regra dos sinais”, que define os produtos e divisões entre números positivos e negativos, é atribuída a diversos pensadores da Antiguidade até o Renascimento. A clareza com que Cardano expôs os sinais e suas operações refletiu o amadurecimento do conceito de número negativo, ainda controverso em sua época (Eves, 2004). A aceitação dos números negativos só se consolidou séculos depois, mas foi alavancada por obras como a de Cardano, que os utilizava operacionalmente, mesmo sem uma fundamentação ontológica clara (Rossi, 2001). A hesitação de muitos matemáticos da época diante desses “números impossíveis” revela o desafio conceitual que a matemática enfrentava.

Cardano não estava sozinho em sua jornada. Seu contemporâneo Rafael Bombelli também contribuiu para a aceitação dos números negativos e imaginários, tratando-os em sua obra “L’Algebra” (1572). Posteriormente, matemáticos como Descartes e Leibniz ajudaram a consolidar essas ideias, tornando-as essenciais para o desenvolvimento do cálculo e da análise (Bourbaki, 1994). A transição do raciocínio retórico para o algébrico simbolizado foi gradual, mas Cardano ocupa uma posição de destaque como um dos precursores dessa transformação (Dantzig, 2006). Sua influência ultrapassou os limites da matemática pura, afetando a filosofia e as ciências naturais.

2. O Valor Conceitual da Regra dos Sinais

Do ponto de vista científico, a regra dos sinais é essencial na estruturação dos sistemas numéricos e na coerência algébrica. O sistema dos números inteiros exige uma definição consistente para a multiplicação e divisão de sinais, garantindo o fechamento das operações e a validade das propriedades distributiva e associativa (Stewart, 2015). Assim, a multiplicação de dois números negativos resultando em um positivo é uma convenção matemática baseada na necessidade de coerência lógica e estrutural (Courant & Robbins, 1996). Tais convenções não são arbitrárias, mas refletem uma busca por completude nos sistemas formais.

A formalização da regra dos sinais também possibilita avanços no ensino de álgebra e no entendimento profundo da estrutura dos números. Segundo Nunes e Bryant (1997), o conceito de número negativo exige uma abstração que nem sempre é intuitiva, mas é fundamental para a compreensão das equações e funções. O raciocínio abstrato necessário para manipular sinais negativos é também um indicador de desenvolvimento cognitivo formal, segundo a teoria de Piaget (Piaget, 1975). Dessa forma, há um entrelaçamento entre os fundamentos da matemática e os pressupostos da psicologia do desenvolvimento.

Além de seu valor teórico, a regra dos sinais está presente em quase todos os ramos da matemática e da física. Em análise vetorial, por exemplo, os sinais determinam a direção de forças, velocidades e deslocamentos (Tipler & Mosca, 2009). Em programação computacional, o controle algorítmico de sinais é decisivo na lógica de loops e de condições booleanas (Knuth, 1998). Assim, a compreensão rigorosa da regra dos sinais transcende a matemática elementar, sendo uma chave para múltiplas áreas da ciência e da tecnologia.

3. Enfoques Experimentais e Aplicações Contemporâneas

Diversas estratégias experimentais têm sido utilizadas no ensino da regra dos sinais, buscando desenvolver um entendimento significativo do conceito. Pesquisas educacionais como as de Borasi (1996) indicam que atividades com retas numéricas, termômetros e movimentos bidimensionais facilitam a internalização dos sinais positivos e negativos. Além disso, o uso de softwares educacionais e ambientes computacionais dinâmicos tem permitido simulações que evidenciam as transformações algébricas envolvidas (Papert, 1980). Tais abordagens conferem concretude a um tema muitas vezes percebido como abstrato.

Aplicações da regra dos sinais são observadas em contextos econômicos, físicos e tecnológicos, o que reforça sua importância educacional. Em economia, o conceito de lucro e prejuízo pode ser modelado com números positivos e negativos, facilitando análises de fluxo de caixa e balanços patrimoniais (Mankiw, 2008). Na física, as leis de Newton frequentemente envolvem grandezas com sinais opostos para indicar direção (Halliday & Resnick, 2011). Na engenharia, a simulação de sistemas de controle também emprega sinais para representar feedbacks positivos e negativos (Ogata, 2010).

O campo da inteligência artificial e do aprendizado de máquina também se beneficia da clareza na manipulação algébrica de sinais. Redes neurais artificiais, por exemplo, ajustam pesos e bias com base em operações que envolvem variações positivas e negativas (Goodfellow, Bengio & Courville, 2016). Erros de predição são corrigidos através de algoritmos que dependem criticamente da interpretação de sinais opostos. Portanto, o domínio da regra dos sinais não é apenas um conteúdo escolar, mas uma habilidade aplicada em fronteiras tecnológicas de ponta.

4. Relevância da Regra dos Sinais na Educação Básica

No contexto da Educação Básica, a regra dos sinais representa uma oportunidade rica para o desenvolvimento do pensamento lógico e abstrato. Segundo Fiorentini e Miorim (1990), trabalhar com operações envolvendo sinais favorece o raciocínio matemático e a compreensão de propriedades fundamentais. A BNCC (Brasil, 2017) destaca a importância de desenvolver competências como o raciocínio algébrico desde os anos finais do ensino fundamental. Assim, o ensino da regra dos sinais não deve ser apenas procedural, mas fundamentado em significados e contextos variados.

Professores que adotam abordagens interdisciplinares encontram maior êxito ao ensinar esse conteúdo. Por exemplo, associar a regra dos sinais a movimentos de subida e descida em escadas ou temperaturas crescentes e decrescentes pode facilitar a construção do conceito (Lorenzato, 2006). A utilização de representações múltiplas, como diagramas, histórias e jogos matemáticos, também tem sido apontada como eficaz por estudiosos da didática da matemática (D’Ambrósio, 2005). Essas práticas tornam a aprendizagem mais significativa, promovendo retenção e aplicabilidade.

A formação docente é um fator crucial para o sucesso na abordagem deste conteúdo desafiador. Professores bem formados compreendem a origem histórica, os fundamentos lógicos e as aplicações do conteúdo, o que lhes permite ensinar com mais segurança e criatividade (Libâneo, 2013). A leitura de obras como a de Cardano pode ser incentivada na formação continuada, ampliando a cultura matemática dos educadores. Dessa forma, a educação básica cumpre seu papel de formação integral ao desenvolver capacidades lógico-matemáticas essenciais para a cidadania e o mundo do trabalho.

Referências Bibliográficas

  • BORASI, R. Reconceiving Mathematics Instruction: A Focus on Errors. Norwood: Ablex Publishing, 1996.
  • BOURBAKI, N. Elements of the History of Mathematics. Berlin: Springer, 1994.
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  • COURANT, R.; ROBBINS, H. What is Mathematics?. Oxford: Oxford University Press, 1996.
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  • LORENZATO, S. O que é o zero?. Campinas: Autores Associados, 2006.
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  • PONTES, Acelino. Prolegômenos à Nova Matemática. Fortaleza: Scientia Publishers, 2023. 232 p.
  • ROSSI, P. Filosofia, Tecnologia e Ciência: 1500–1700. São Paulo: UNESP, 2001.
  • STEWART, I. The Great Mathematical Problems. New York: Basic Books, 2015.
  • TIPLER, P. A.; MOSCA, G. Physics for Scientists and Engineers. 6. ed. New York: W.H. Freeman, 2009.

John Andrew Fossa

Possui graduação em Filosofia pela College Of The Holy Cros s(1972), mestrado em Filosofia pela Fordham University (1974) e doutorado em Educação Matemática pela Texas A&M University System (1994).

Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Tem experiência na área de Matemática, com ênfase em História da Matemática.

Atuando principalmente nos seguintes temas: Educação Matemática, Intuicionismo, Construtivismo Radical.

CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2466525106349625


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